terça-feira, 14 de dezembro de 2010

A filosofia e a libertação das crianças



Pensemos nas seguintes palavras : investigação, conhecimento/conhecer, fatos, linguagem (literal e figurada), metáforas, símiles, analogias, mente/corpo, mesmo/outro, sociedade, democracia, real, pensar/sentir, pensar sobre o pensar, amigo, amor, inimigo, direitos, justiça, verdade, beleza, deus, natureza, pessoa, arte, tempo/espaço, causa/efeito, mal, medo, emoções, razão, critérios.

Quais destas palavras, ou outras semelhantes, não fariam parte do vocabulário de uma criança de 5 anos de idade? Alguém poderia sugerir que não utilizaria palavras como "critérios" ou "razão". Vamos analisar alguns exemplos.

Uma mãe diz para sua filha de 5 anos que ela não pode jogar com sua amiginha. O que a menina vai fazer? Vai perguntar "por quê?". Que é que ela está perguntando? A razão da proibição de sua mãe. Vamos supor outro exemplo. Um menino briga com outro e diz para ele que não quer jogar mais, que não quer mais ser seu amigo. O seu amigo vai perguntar-lhe "por quê?".

Está perguntando-lhe a razão da sua decisão. Vamos supor outro exemplo. Uma criança adorou um programa de televisão, encontra-se com um amigo e pergunta se ele gostou desse programa. O amigo diz que não, que odiou o programa. O que o menino vai lhe perguntar? Vai perguntar-lhe por que ele odiou o programa. Neste caso está perguntando por critérios, porque quando alguém afirma que uma coisa é boa ou chata e outro pergunta por que, está perguntando pelos critérios desse julgamento. Poderão ser critérios bons ou ruins, mas serão critérios.

O que eu quero dizer é que mesmo que as crianças não utilizem as palavras citadas acima, elas utilizariam outras para dar conta dos conceitos que estão envolvidos nesses termos. Certamente, talvez uma criança de 5 anos não utilize a palavra justiça, mas com certeza percebe que muitas coisas que acontecem em sua vida não são justas. Outro exemplo. Uma criança foi com sua mãe comprar um brinquedo para o dia das crianças numa loja cheia de brinquedos, com bonecos de todas as formas e cores. A criança pergunta para sua mãe como escolher o boneco e a mãe responde "só pegue um". A criança quer saber como fazer para escolher e a mãe responde que deve pegar aquele que gosta. A criança diz então que gosta de todos e a mãe começa a ficar nervosa e diz que só pode escolher uma. A criança já sabe isso, mas precisa ajuda para escolher. Geralmente as crianças ficam em dúvida sobre o que quer dizer a palavra "escolher"...

Talvez as crianças também não utilizem a palavra "investigação". Porém, as crianças não compreendem muitas coisas. E elas se empenham em descobrir como é que as coisas acontecem no mundo; em particular, buscam compreender o significado dessas palavras que as pessoas maiores utilizam permanentemente, palavras como bem, tempo, verdade. Quando as crianças perguntam aos adultos o significado dessas palavras, geralmente não recebem respostas. As crianças são socializadas através da linguagem e aprendem a utilizar as palavras de uma determinada maneira, sem pensar muito nelas.

As palavras que coloquei no começo desta apresentação são palavras especiais. Elas têm três características. A primeira é que são conceitos centrais, conceitos que utilizamos no dia-a-dia, que estão na base de nossa experiência cotidiana, e se não usamos exatamente essas palavras, provavelmente utilizamos um sinônimo delas. A segunda característica é que elas são conceitos comuns, que todos utilizamos, não só algumas pessoas ou algumas culturas. A terceira característica é que esses conceitos são controversos, contestáveis, não temos resposta definitiva acerca do que eles significam. E no Ocidente, pelo menos nos últimos vinte e cinco séculos, as pessoas têm tentado descobrir possíveis significados. Muitas respostas se propõem, mas, o mais importante em relação à libertação das crianças é que devem saber que se trata de conceitos contestáveis, controversos. Porque, se as crianças não sabem que esses conceitos são controversos e contestáveis, elas ficam presas à cultura na qual são socializadas.

Mais ainda, muitas vezes as crianças tornam-se infelizes quando descobrem que seu melhor amigo considera que um amigo é algo totalmente diferente daquilo que elas consideram. Palavras como amigo, amor, liberdade são centrais para o modo como uma criança constrói e percebe seu mundo. Se uma criança não sabe que essas palavras são controversas e que existem muitas maneiras de compreendê-las, corre o risco de ser transformada num depósito de significados prontos e estanques.

Se me perguntassem por que eu me envolvi na idéia de que as crianças façam filosofia, diria que é porque me sinto ofendida com a idéia de que tratamos as crianças como se fossem depósitos e as mutilamos até que sejam maiores de idade. Elas fazem dezoito anos e continuam utilizando palavras como amor e amizade sem saber de que estão falando.

Neste sentido, uma das maneiras de perceber a filosofia é como um processo educacional de libertação da criança. Trata-se de libertar as crianças para que possam pensar por elas mesmas acerca do significado dessas palavras. Não é justo que não se permita às crianças saber que existem muitas maneiras de pensar acerca dessas palavras. A história da filosofia ocidental, que contém diferentes maneiras de conceber esses conceitos, é um legado de todas as crianças, sejam elas conscientes disso ou não. Todas as crianças têm direito de conhecer as opções antes de escolher que significado darão a essas palavras. Neste sentido, a filosofia pode ser compreendida como um processo de libertação.

Mas a filosofia é muito mais que isso, porque é uma disciplina normativa, além de descritiva. Quero dizer, ocupa-se não só de como as coisas são, mas também de como deveriam ser. Quando observamos o mundo, percebemos muita injustiça, muita falta de liberdade, muito ódio em vez do amor, e nós gostaríamos de conceber e criar um mundo mais justo, mais belo, mais verdadeiro. Para isso é necessário sabedoria e bom julgamento, precisa-se saber pensar e saber pensar bem, saber quais são aquelas opções e também cultivar a imaginação para talvez propor outras opções; precisa-se também ser crítico, ser capaz de olhar as instituições da sociedade e perguntar se elas cumprem aquilo que deveriam fazer. E é indispensável ser criativo, colocando algumas sugestões sobre como as coisas poderiam ser melhores. Finalmente, é fundamental também pensar de um modo ético, atencioso. Como pessoas, não nascemos dessa maneira, mas podemos ser educados desta forma.

Por isso é que estamos propondo um novo paradigma em educação, que busque, não só no Brasil mas no mundo inteiro, transformar cada sala de aula numa comunidade de investigação. Nessas comunidades seriam desenvolvidas as inteligências emocional, cognitiva e social das crianças. Exploraríamos não só o que pensamos e como pensamos mas também o que sentimos e como sentimos, e exploraríamos o que pensamos que a sociedade deveria ser e como deveríamos nos relacionar nessa sociedade. 

Como se trata de fazer isso com crianças, o currículo de filosofia para crianças foi criado para fazer acessíveis a elas as idéias filosóficas trabalhadas durante os 2.500 anos de história da filosofia ocidental. Nessas histórias, não são utilizados os nomes reais dos filósofos, mas as suas palavras, e seus pontos de vista são apresentados na fala das personagens-crianças. São as crianças das histórias que dizem aquilo que Aristóteles, Santo Tomás, Spinoza, Marx, Dewey ou Freire têm colocado. É como se os filósofos tivessem uma longa conversação, mesmo que tenham morrido há muito tempo atrás. Platão teve algumas idéias e logo Aristóteles gostou de algumas, mas rechaçou outras e criou novas idéias. O mesmo aconteceu com todos os filósofos. Quando as crianças lêem estas histórias, descobrem estas idéias e exploram essas palavras com seus amigos, é como si elas estivessem participando dessa conversação. Embora esses filósofos tenham morrido há tanto tempo atrás, existe um sentido no qual eles ainda estão vivos, na medida em que se expressam nas vozes das crianças.

De tal modo que, através da filosofia, as crianças podem investigar o que significam essas palavras que utilizamos no dia a dia. A decisão de como utilizar estas palavras tem muito a ver com o modo como criamos nossa visão do mundo, nossa cosmovisão. Como o mundo em que vivemos hoje tem muitos problemas, necessitamos cada vez mais pensar não só naquilo que é, mas naquilo que deveria ser. Para isso, a imaginação é necessária. É preciso aprender a criar e inventar novos sentidos e significados. Quando o processo filosófico dá certo, as pessoas podem chegar a ser pessoas que fazem bons julgamentos.

Talvez não proporcionemos muita informação (os computadores vão preocupar-se com isso), mas devemos nos ocuparmos de educar pessoas com bom julgamento. Para isso, não podemos esperar até que as crianças façam dezoito anos. Temos que começar muito antes, quando aprendem a falar. Não se trata só de introduzir uma disciplina no currículo escolar, como a ciência foi introduzida no século XIX. Trata-se de pedir aos professores e administradores escolares que repensem aquilo que entendem por educação, que parem de pensar tanto na informação e que comecem a pensar em bons pensamentos, sentimentos apropriados e boas relações sociais, pois, dessa maneira, estaremos proporcionando às crianças uma oportunidade de fazer julgamentos inteligentes em suas vidas, estaremos apresentando-lhes opções para escolher, e as ferramentas que precisam para pensar novas opções, novos sentidos e significados, novas relações. Nesse sentido seriamos agentes de uma revolução educativa. Isso não é uma responsabilidade pequena. Para todos que aceitam essa responsabilidade, falo em nome das crianças do futuro: muito obrigada.

Ann Margaret Sharp*


Reproduzido de
Linhas Críticas . Revista da Faculdade de Educação/UnB



Leia mais sobre a autora em Filosofia para crianças clicando aqui, e assista ao vídeo "Prof. Ann Margaret Sharp's lecture" em Vimeo (em inglês) clicando aqui. Entrevista (em inglês) clicando aqui.

* Ann Margaret Sharp (1942-2010) Foi diretora do Institute for the Advancement of Philosophy for Children, na Universidade de Montclair, NJ, Presidente do International Council for Philosophical Inquiry with Children e co-autora dos manuais do Programa de Filosofia para Crianças.

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