Inka Samana. Educação Infantil Comunitária. Otra Educación
Equador: a
opção pela dependência
Elaine
Tavares
Apesar de
toda a propaganda que se faz do Equador, colocando-o dentro de um espectro de
"país dirigido pela esquerda", não são poucas as contradições
vivenciadas pelo governo de Rafael Correa, cada vez mais distante do que se
poderia considerar um mandato com o povo. Indiscutivelmente o primeiro mandato
trouxe avanços importantes, como a realização de uma nova Constituinte,
soberana e autônoma, que, apesar de todos os percalços, conseguiu levar para
dentro do documento que rege a vida das gentes numa nação uma série de avanços
fundamentais que, inclusive, servem de exemplo a todo o mundo.
Mas, no
cotidiano da vida, quando a Constituição começou a ser regulamentada, os
interesses econômicos e políticos começaram a aparecer com força e a ditar
regras que, de certa forma, destroem toda a lógica do sumak kausai (o
bem viver - que é o bem viver de corte indígena, não é o consumismo do mundo
capitalista), centro de toda a Constituição nacional. Um dos exemplo mais
visíveis é o da mineração e da exploração de petróleo. Mesmo que a
natureza tenha ganhado um capítulo dentro da carta magna, revestindo-se de
direitos, na prática tudo cai por terra quando os interesses econômicos cobram
a conta do que chamam "progresso". Em nome do que denominam
"desenvolvimento", as classes dominantes impõem seu modelo e passam
por cima do que foi construído coletivamente com muita luta pela população do
país.
Os povos
indígenas são os que mais tem sofrido nesse processo. Primeiro porque
sistematicamente sofrem desqualificações sobre a sua maneira de viver a
política. Não é raro que a qualquer grito de rebeldia eles sejam imediatamente
ligados a setores da direita raivosa do Equador, tal qual o grupo do
ex-presidente Lucio Gutierrez, de descendência indígena. Basta que haja
qualquer oposição ao projeto governamental e lá vem o velho discurso de que os
índios estão sendo manipulados, que fazem o jogo da direita, etc...
É fato que a
direita se aproveita - e muito bem - das batalhas travadas pelos indígenas
contra as propostas do governo, mas daí a dizer que eles são manipulados é pura
ideologia. E também mostra que a elite dominante continua mantendo pelas
populações originárias um profundo desprezo, a tal ponto de nunca admitir que
os indígenas possam pensar, formular políticas e definir suas demandas de
maneira autônoma e livre.
Outro
discurso que o governo usa com bastante maestria, até porque Rafael Correa é
bastante carismático e uma figura midática, é o da necessidade do progresso.
Alegando que o país tem imensas riquezas minerais que necessitam ser exploradas
para que as gentes possam ascender a bons níveis de consumo, o governo vem
passando por cima daquilo que foi a pedra fundamental da nova Constituição: a
vontade popular. No caso dos territórios indígenas está na lei que, para
qualquer tipo de exploração dos recursos, a comunidade precisa ser ouvida. Mas,
não é o que acontece. Mesmo que as comunidades estejam gritando contra a
exploração, fazendo lutas, enfrentando a polícia, o governo permanece surdo. E
ainda joga o restante da população contra os indígenas alegando que eles estão
tentando impedir o "progresso" do país. De certa forma, o governo
alimenta o velho ódio, de origem colonial, entre brancos e índios. Não são
raros os textos e opiniões de gente da esquerda de toda a América Latina que
também cai nesse canto de sereia.
Ataque à educação indígena
O mais novo
ataque do governo de Rafael Correa é contra a educação indígena. Mesmo que a
Constituição tenha garantido o direito a pluriculturalidade, na prática o que
está acontecendo no campo da educação é o soterramento de toda e qualquer
iniciativa indígena, ganhando força a homogeneização da educação. O primeiro
golpe foi na Universidade Intercultural Amawtay Wasi, universidade indígena que
existe no Equador desde 2004 com o objetivo de atuar na educação superior a
partir de uma pedagogia autóctone. Ou seja, a forma de ensinar e os conteúdos
do ensino estão completamente ligados ao jeito de ser das comunidades indígenas
que, ao contrário do que muitos pensam, mantiveram vivos seus pressupostos
éticos e pedagógicos apesar de mais de 500 anos de dominação. Assim, a
universidade surgiu justamente para se contrapor ao modelo bancário de educação
segmentada, descontextualizada e colonizada. Entre seus princípios está a
proposta de criar um sistema de educação superior que tenha a sua identidade
(indígena), dentro de um marco da integralidade do conhecimento, permitindo
assim superar a ruptura usual que existe entre teoria e prática. Busca ainda
formar profissionais que tenham uma visão intercultural, descolonizada,
capazes de entender onde vivem e de buscar soluções para os problemas
concretos das nacionalidades e populações. Gente que também seja capaz de
conhecer os mais diversos saberes que existem nas comunidades, apropriando-se
deles para melhorar a vida e para construir, de verdade, uma sociedade intercultural,
na qual o saber científico conquistado pelo mundo ocidental dialogue com os
saberes originários, sem dominação.
Não bastasse
essa "heresia" descolonial, a Amawtay Wasi tem uma estrutura física e
pedagógica que está totalmente integrada à cosmovisão dos povos indígenas. Todo
o trabalho se ampara nos princípios de vincularidade (a relação entre o todo e
as partes), complementariedade (a necessidade de um `outro`, com o qual se
dialoga), simbólico (relação entre o saber científico e o que ele significa no
âmbito simbólico), e a reciprocidade (a troca de saberes). Esses são conceitos
muito difíceis de serem compreendidos por aqueles que tem uma formação
racional, ocidental. É praticamente outra episteme e precisa ser
compreendida como uma forma radicalmente diferente de atuar, de educar e de
viver.
Pois com a
nova lei de educação, o governo de Rafael Correa decidiu homogeneizar o
processo educativo, sem levar em consideração a própria Constituição que
garante a pluriculturalidade. Depois de vários meses sendo visitada por
tecnocratas governamentais, a Universidade teve seu registro suspenso. Não pode
mais funcionar da forma como se organiza, a partir dos princípios que regem o
mundo indígena. Os "educadores" governamentais querem que a Amawtay
Wasi morra ou se iguale às demais universidades organizadas dentro dos cânones
ocidentais. Mas, não é essa a proposta da universidade indígena. Ela quer,
justamente, se contrapor a essa pedagogia desestruturante e colonial. No
contexto de uma sociedade pluricultural, não há motivo para que isso não
aconteça. É só uma universidade diferente, que atua dentro da episteme dos
povos indígenas que ali vivem desde muito antes dos espanhóis chegarem e
invadirem seus mundos, impondo uma cultura de dominação e de extermínio.
Mas, Rafael
Correa tem sido implacável, espalhando ainda que a universidade é foco de
resistência de grupos ligados à Lúcio Gutierrez. Como argumento usa o fato de a
mesma ter sido criada durante o governo daquele presidente. Na verdade, o que
quer é destruir um espaço de formação indígena construído a duras penas pelas
comunidades.
As escolas comunitárias
Todo esse
ataque ao mundo indígena ainda não terminou. Agora, o governo decidiu também
eliminar as pequenas escolas comunitárias que atuam na lógica intercultural,
ensinando em duas línguas. Não quer mais que a educação alternativa (leia-se
indígena) se faça nas pequenas unidades que atuam com a proposta de
unidocência, porque os indígenas acreditam que o conhecimento é um só, e não
pode ser dividido em aulas de 50 minutos desconectadas do mundo real.
Mais uma vez,
os tecnocratas governamentais decidiram que a educação de primeiro e segundo
grau do Equador devem seguir as propostas do Banco Mundial e precisam se
constituir em "Unidades Educativas do Milênio", as quais são
reputadas as novidades tecnológicas e todas aquelas "maravilhas" que
os projetos vindos de fora apregoam. Falam em escolas equipadas com
computadores, alto nível de ensino, novos conceitos pedagógicos. Tudo dentro da
proposta ocidental, sem considerar as especificidades da pedagogia indígena.
Segundo a pedagoga Rosa María Torres (http://otra-educacion.blogspot.com.br),
a proposta está centrada na aparência, sem que sequer se mencione a situação
dos professores, por exemplo, categoria que tem protagonizado grandes lutas no
país.
No campo da
propaganda o governo de Correa consegue convencer. Desde 2008 vem construindo
uma série de UEMs (Unidades Educativas do Milênio), cujo número já ultrapassa
as 24, atendendo 23 mil estudantes. E segue construindo outras tantas, dizendo
que aumentará esse número em mais de 30 até 2014. Os prédios bonitos e bem
pintados aparecem como o "progresso para todos". E justificam a
exploração de petróleo na região do Parque de Yasuní. "Com o petróleo
teremos mais saúde e educação para todos", diz, na tentativa de buscar
apoio para as ações de fechamento das escolas indígenas. Conforme anunciou, das
18 mil escolas comunitárias que existem, apenas cinco mil seguirão abertas.
Conforme diz, as escolas comunitárias, aquelas que são geridas de forma
alternativa, "são o atraso, a marca da pobreza". Já os educadores que
sempre estiveram nas comunidades quando o estado as abandonava, têm outra posição.
Eles dizem que essas escolas que vivem à margem do sistema oficial são,
recorrentemente, referência na inovação e na transformação cultural, tanto no
Equador quanto no mundo. Segundo eles, esse tipo de escola multigrau e
unidocente não é necessariamente uma escola para pobres. Ao contrário, é uma
escola que se contrapõe ao sistema bancário imposto pelo Banco Mundial a toda
América Latina. Como exemplo lembram do programa Escola Nova, que existe na
Colômbia e o das Escolas Não-Formais, experiência de Bangladesh, ambas modelos
premiados internacionalmente.
Mas, ainda
assim, segue a "planificação" da educação, sem que se leve em conta a
voz dos educadores e das comunidades. Toda a proposta vem sendo construída por
burocratas, apresentando as modernidades como a solução do problema educativo.
"Fecharemos as escolinhas precárias e os alunos serão realocados nas
Unidades Educativas do Milênio", diz, sorridente, Correa, na televisão.
Num primeiro momento, tudo pode parecer muito bom. Novos prédios, fusão de escolas,
urbanização de escolas rurais, transporte escolar. Tudo preparado para a
criação de grandes complexos escolares com educação
igualada/homogênea/ocidental, sem que se leve em conta as especificidades
culturais, tal como reza a própria Constituição.
Diz a pedagoga
Rosa María Torres sobre uma UEM que visitou: "Em Otavalo, norte de Quito,
inaugurada em abril de 2009, com grande presença da mídia. Era a terceira UEM
construída no país e custara 2 milhões de dólares. Os alunos, 800, são de
maioria indígena. A escola abriu com os sete primeiros anos de educação básica.
Tem 38 salas de aula, quadros digitais, cozinha, restaurante, espaços
esportivos, laboratórios, bibliotecas, 38 computadores e internet banda larga.
O desenho da escola é tradicional, frio, sem qualquer presença da cultura
local. Os professores sequer sabem usar o quadro negro digital, é visível a
falta de capacitação. Nota-se que os espaços são subutilizados, há problemas de
segurança e não se vê qualquer preocupação com a capacitação dos professores".
Ou seja, tudo conspira para uma ode a tecnologia, sem cuidado pedagógico e
muito menos o contexto cultural.
Inka Samana é
uma pequena escola indígena no sul do país, reconhecida internacionalmente como
espaço de uma "revolução educacional", por sua proposta diferenciada
de ensino de saberes que vão além do formal. Pois também ela deverá entrar no
sistema homogeneizado da "educação nacional", abrindo mão dos
aspectos simbólicos e culturais que a caracterizam. Os protestos tem sido
grandes, mas o governo segue surdo. Quem quiser conhecer melhor essa bonita
experiência de educação indígena pode encontrar sua voz nas redes sociais (https://www.facebook.com/pages/INKA-SAMANA/101245569927872?fref=ts).
A pedagoga
Rosa María Torres lembra ainda de outras experiências comunitárias indígenas
como as da província de Pichincha, a Escola Ecológica Samay e a Yachay Huasi
(Escola do Saber), que atuam no diálogo entre educação formal e educação
indígena. Há coisas do mundo das comunidades que as UEMs não tocarão, com
certeza, como a sabedoria dos mais velhos, fazer uma rede ou como reconhecer
uma semente, reforçando a ideia de que só a educação
formal/ocidental/moderna/científica é que é importante. Enfim, são dezenas de
experiências comunais, culturais e alternativas que estão prestes a sucumbir
diante da ideia de uma "educação única, nacional". Isso não pode ser
possível num país com tantos povos indígenas, já tão acostumados a atuar dentro
de seu mundo cosmogônico e simbólico.
A luta é
desigual. O governo constrói prédios vistosos e garante a gratuidade do ensino
formal, mesmo que a qualidade desse ensino esteja submetida aos ditames
internacionais. As pequenas escolas indígenas vivem de contribuições da
comunidade ou de ajuda externa. O governo já declarou que não aportará recursos
a essas experiências. Sufoca todas elas no campo econômico e depois acusa os
educadores de aliança com ONGs estrangeiras e grupos direitistas. É um cenário
difícil de se assimilar.
A mesma
prática tem se dado no campo universitário. No mesmo momento em que anuncia o
descredenciamento da Universidade Intercultural Amawtay Wasi, o governo divulga
a criação de quatro novas universidades estatais, onde os equatorianos poderão
ter ensino superior gratuito. Difícil para quem segue acreditando que as
culturas indígenas não tem nada a dizer no mundo, aceitar que as mudanças da
educação equatorianas não sejam boas. Pois se aumentam as universidades
públicas, se constroem novas escolas, se amplia o ensino gratuito. Poucos são
os que questionam esse processo de destruição do saber indígena, da forma
indígena de educar. Para boa parte das gentes, rendidas ao mundo ocidental,
racionalizado e dependente mais vale uma escola grande que um ensino de
qualidade. Se as diretrizes vêm do Banco Mundial, melhor ainda, vão aprender
conforme aprendem os "gringos".
Poucos são
aqueles que observam criticamente o processo de aprofundamento do colonialismo
mental em pleno governo dito "progressista". A destruição das escolas
comunitárias, dos espaços indígenas de saber e da universidade Amawtay Wasi
são, na verdade, uma grande ofensiva do capital contra os povos indígenas, tradicionalmente
um entrave nos planos de ganância e destruição de empresas transnacionais, da
elite local e de muitos governantes. Estrangular essas experiências é um ato de
força e de beligerância.
Os indígenas
agora denunciam e não deverão aceitar tudo isso sentados. Eles encontrarão suas
formas de resistir e manter viva suas culturas. Serão acusados de alianças com
Gutierrez, com forças estrangeiras que querem destruir o governo
"popular" e muitas outras coisas mais. Algumas comunidades podem até
se enredar nessas armadilhas, isso não se descarta. Mas, qualquer guinada para
a direita dos povos originários só se dará por conta do desrespeito às culturas
antigas, por conta da insensibilidade do governo em dialogar, pela arrogância -
herança colonial - e pela intransigência de Correa. Ou seja, o Equador vive uma
hora importante de aprofundamento da dependência e da submissão aos grandes
interesses internacionais. Não há interesse em se aliar aos povos autóctones
para a construção do sumak kausai, conforme grita a Constituição. O que
parece direcionar a ação do governo é o mesmo modelo desenvolvimentista que já
mostrou todas as suas tristes e destruidoras faces por onde passou. Explorar
petróleo, explorar minério, desalojar famílias, garantir um consumo fictício a
uma classe média emergente, provocar a destruição do ambiente, incutir uma
educação alienante e colonizada e maquiar o sistema de saúde. Tudo isso pode
estar sendo construído para servir de base para a consolidação daquilo que
"la radio buemba" (o que se diz nas ruas, boatos) já anuncia: a vinda
de um acordo comercial de livre comércio com os Estados Unidos. Se isso se
confirmar, o futuro será sombrio, com o aprofundamento da dependência
econômica, política e cultural. Tudo como antes.
Então, nada
de novo no front. A não ser a força viva das gentes de Abya Yala que, mesmo
derrotadas, se reorganizam e voltam a se levantar.
Reproduzido de
Palavras
Insurgentes
18 nov 2013
Mais sobre
Rosa María Torres no Blog Outra Educación, clicando aqui.
Leia também o texto "Adiós a la Educación Comunitaria y Alternativa/Ecuador: Good Bye to Community and Alternative Education", por Rosa María Torres, clicando aqui.
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