A Lei da Mãe Terra: um
novo momento da luta na Bolívia
Por Elaine Tavares
- Jornalista
Instituto de Estudos
Latino-Americanos
04.02.2013
- O presidente boliviano, Evo Morales, encerrou no último dia 15 de janeiro um
importante ciclo de luta contra o latifúndio no país, quando promulgou a Lei da
Mãe Terra e Desenvolvimento Integral para Bem Viver. Com ela, o Estado pretende
equilibrar a posse da terra e garantir direitos à natureza, visando em última
instância que as pessoas possam viver bem, com qualidade e em harmonia com a
terra. "Temos que trabalhar para viver bem e garantir o que necessitamos.
Não mais que isso", afirmou o presidente, para o qual o consumo
desenfreado capitalista é um dos grandes responsáveis pela destruição do
planeta.
Quando
Evo Morales assumiu o governo em 2006 a Bolívia praticamente não tinha uma lei
que garantisse a legalidade das terras comunais, assim como crescia o
latifúndio na região oriental, inclusive garantido na famosa reforma de 1953, a
qual permitia que uma única propriedade pudesse ter até 50 mil hectares. Não
foi sem razão que partiu de Santa Cruz de La Sierra a primeira grande onda de
protesto contra o governo de Morales, ainda em 2008, quando a Bolívia chegou
quase a uma convulsão social patrocinada pelos fazendeiros da região. Eles não
queriam a aprovação, na Constituição, do limite de até 5 mil hectares
propriedade. Naqueles dias houve um plebiscito sobre o tema e mais de 80% do
país votou favorável a diminuição do tamanho da propriedade. Era uma primeira
queda de braço vencida.
Agora,
essa nova legislação, nascida do debate permanente com a organizações sociais,
garante a proteção da Mãe Terra, assim como recupera e fortalece os saberes
locais e conhecimentos ancestrais. O capítulo I trata dos objetivos e
princípios. No artigo primeiro fica estabelecido que é dever do Estado
Plurinacional e da sociedade garantir os direitos da Terra. No artigo segundo
estão definidos os princípios que regem a lei: harmonia (a ação humana deve
equilibrar-se com os ciclos e processo da terra), bem coletivo (os interesses
sociais e coletivos são mais importantes que os interesses individuais),
garantia de recuperação da terra (deve-se dar tempo para que a terra se
recupere e se adapte às perturbações, regenerando-se sem mudar suas
características), respeito, não mercantilização e interculturalidade.
O
capítulo II dá conta da definição e do caráter da Mãe Terra. Estabelece que ela
é um sistema vivente dinâmico formado pela comunidade invisível de todos os
sistemas de vida e dos seres vivos inter-relacionados, interdependentes e
complementares que compartilhar um destino comum. Define ainda que os sistemas
de vida são as plantas, animais, micro organismos e outros seres onde inter
atuam comunidades humanas com suas práticas produtivas e culturais com suas
respectivas cosmovisões de nações, indígenas e afrodescendentes. Como caráter
jurídico a Mãe Terra aparece como sujeito coletivo de interesse público e a
população boliviana tem o dever de zelar pelos seus direitos.
No
Capítulo III estão listados os direitos garantidos à Terra: o direito à vida,
com a manutenção do seus sistema e dos processos naturais; o direitos à
diversidade garantindo que nada seja alterado geneticamente ou modificado de
maneira artificial; o direito à água, garantindo a preservação, a quantidade e
a qualidade; direito ao ar limpo, ao equilíbrio, à restauração e a viver livre
de contaminação. Aqui, nesse capítulo define-se claramente a proibição aos
transgênicos e o combate à mineração que tanta destruição ambiental vem
causando na América Latina.
O
capítulo IV estabelece as obrigações do Estado e da sociedade e ali estão
definidas a necessidade de desenvolvimento de políticas públicas para a
proteção da natureza, para o consumo equilibrado, contra a mercantilização,
pela soberania energética, pelo desenvolvimento de energia limpa. Também
estabelece os deveres das pessoas no cuidado com a terra, na promoção da
harmonia, na participação da construção das políticas, nas práticas e hábitos
que se harmonizem com a proteção, na denúncia de tudo que atentar contra os
direitos da terra. Finalmente, o artigo final (10) cria a Defensoria da Mãe
Terra que tem por missão velar a vigiar pelo cumprimento da lei.
Mas,
o que é considerado um avanço tremendo para a maioria da população não está
sendo bem visto pelos grandes proprietários. Com a lei, que aparece de forma
singela, fica comprometido todo um projeto que as grandes empresas
transnacionais tem para o país, dono de riquezas minerais imensas. Como a elite
boliviana tem ligação visceral com esse projeto que se projeta desde fora, a
resposta promete ser forte. A Lei da Mãe Terra acaba se contrapondo à mineração,
aos mega projetos energéticos, aos transgênicos e muitos de seus artigos
necessitam leis complementares. Essa será uma nova batalha a ser travada.
O
presidente da Associação Nacional de Produtores de Oleaginosas e Trigo,
Demetrio Pérez, deu declarações nos jornais afirmando que proibir os
transgênicos é colocar travas no desenvolvimento produtivo. E já avisou que no
processo de discussão das leis complementares eles estarão atuando. Também o
presidente da Confederação de Criadores de Gado da Bolívia, Mario Hurtado,
acredita que a nova lei trará muitas incertezas para os proprietários e eles
haverão de agir.
De
qualquer forma, ainda que venham novas lutas, a Bolívia deu um passo importante
em nível mundial ao reconhecer a condição "sagrada" da terra,
recuperando elementos ancestrais da cultura andina que nunca deixaram de
existir, embora estivessem escondidos sob o domínio colonial e depois nos
sucessivos governos de marionetes. A terra vista como
"Pachamama", não na sua percepção folclórica ou anacrônica, mas como
um sistema vivo, no qual o ser humano é só mais um elemento. Garantir o
equilíbrio desse sistema passa a ser fundamental também para a sobrevivência da
espécie.
A
lei sobre o direito da Terra não está sozinha dentro do complexo sistema de
"justiça climática" que está em voga hoje no país. Também existe a
Lei da Revolução Produtiva (com amplo apoio ao pequeno e médio produtor), o
processo de distribuição de sementes de qualidade, o seguro agrícola para
ajudar em casos de desastres naturais e o Observatório Ambiental. Cada uma
dessas iniciativas formam um sistema para garantir a segurança alimentar da
população assim como a proteção da terra.
A
questão ambiental, que o sistema capitalista tenta impor ao mundo como um
problema causado sempre pelo "outro", se resolve assim mesmo. Cada
microrregião do planeta pode cuidar de si, garantindo a proteção à terra
e tornando possível que a sociedade assuma o definitivo controle sobre seu
ambiente, atuando de maneira protagônica no processo e não apenas como quem
denuncia. Agora, na Bolívia, esse é o desafio. Cada pessoa tem o direito e o
dever de atuar na proteção e na formulação das políticas. E, além das
leis que asseguram a proteção à Pachamama ainda poderão contar com o Fundo
Plurinacional da Mãe Terra, formado de verbas públicas e privadas, para que
seja possível administrar essa nova foram de interagir com a natureza.
Uma
nova fase da luta pelo equilíbrio da vida começa agora na Bolívia. Não vai ser
coisa fácil e precisa de tempo para se fortalecer e vingar.
Veja
a lei, na íntegra no sítio, clicando abaixo:
Reproduzido
de IELA
04
fev 2013