quinta-feira, 2 de agosto de 2012

América Indígena, precursora do mundo 2.0


Práticas comunitárias dos povos pré-colombianos anteciparam atitudes de colaboração e compartilhamento que marcam a nascente cultura pós-capitalista

Este artigo foi publicado por  André Gustavo de Araujo Barbosa   no grupo Multiversidade da Escola de Redes , a partir do link do título abaixo.

Parte 1:

Por Bernardo Gutierrez | Tradução: Daniela Frabasile

A economia compartilhada está em alta. O croud sourcing (compartilhar um trabalho colaborativo com uma multidão que atua em rede) já é conhecido. O croud funding (financiamento coletivo) chegou com muita força em setores como a cultura. A sociedade P2P (peer-to-peer, de pessoa a pessoa) — mais horizontal, participativa e menos fixada em retribuições econômicas, como definem Yochai Benkler ou Michel Bauwens — ilumina o túnel, como uma das possíveis saídas pós-capitalistas. O commons – o bem comum e os bens coletivos – está em pauta. O co-working já não é tendência: é realidade. Infelizmente, há quem só acredite nessas novas práticas e realidades se um guru do Vale do Silício fala sobre elas. E se existe um termo em inglês…

Surpresa: se estudarmos as práticas da América pré-colombiana veremos que todos os indígenas praticavam o crowd funding, crowd sourcing ou as dinâmicas participativas da era 2.0. A chegada dos povos africanos, com uma forte origem coletiva, também transformou a América (principalmente a latina) em um grande território do comum (commons territory, para aqueles que preferirem). A América pré-capitalista era chic, cool e 2.0, não é mesmo? E ainda é. Os indígenas anteciparam-se em vários séculos no que diz respeito à chamada economia do compartilhamento (sharing economy). A mega crise mundial está pressionando a produção a uma mudança irreversível. E o pós-capitalismo tem algumas de suas raízes naquele pré-capitalismo da América indígena.

Nota aos incrédulos: preparei uma rápida revisão de alguns termos e práticas colaborativas dos povos indígenas da América Latina. Que cada um complete e atualize a lista como queira, porque sem dúvida é apenas uma aproximação.

Tequio. É uma forma de trabalho em prol do coletivo muito enraizado na cultura zapoteca. Os integrantes de uma comunidade fornecem material ou sua força de trabalho para realizar uma obra comunitária. Pode ser uma escola, um poço ou uma estrada. O indivíduo não pode ser nunca o único a ser beneficiado pelo tequio. Tem um toque de crowd sourcing, um pouco de crowd funding e muito de commons. O tequio ainda funciona em alguns estados mexicanos. Em Oaxaca, está protegido por uma lei estatal. Existem outros termos para práticas similares, como gozona e o trabalho a mano vuelta.

Parte 2:

Potlatch. As tribos indígenas do Pacífico, nos Estados Unidos e Canadá, praticavam um ritual de troca que, na essência, é igual à troca de arquivos peer-to-peer da era digital. O potlatch, usado pelos povos HaidaTlingitTsimshian, SalishNuu-chah-nulth, e Kwakiutl, é o peer-to-peer em estado puro. O potlatch não era um escambo. Os povos distribuíam alimentos (principalmente carne de foca e salmão) e riqueza para outras tribos que não tinham vivido um bom ano. Um detalhe importante: alguns colonizadores europeus enriqueceram-se graças ao potlatch. Exatamente como os cantores famosos que, segundo estudos, beneficiam-se da troca de arquivos entre usuários — que alguns empenham-se em chamar de pirataria…

Guelaquetza. A tradição de guelaguetza, do estado mexicano de Oaxaca, lembra uma mescla do tequio e do potlatch. A palavra significa “troca recíproca de presentes e serviços”. Sua prática se tece entre as relações recíprocas que unem as pessoas. É a base de uma rede de cooperação entre famílias e até entre povos e municípios. A guelaguetza deriva também de uma celebração sincrética que acontece na cidade de Oaxaca.

Minga. É um termo quechua que define um mecanismo ancestral de trabalho coletivo, muito comum no norte do Peru e no Equador. O objetivo da comunidade está acima de qualquer benefício individual. A colaboração, acima da competição. É 100% commons economy + crowd sourcing. Não é coincidência que a Cultura Senda, que trabalha com a cultura de rede, tenha realizado recentemente, em Quito, um seminário chamado Open Minga. A minga, segundo o texto da Cultura Senda, “implica no desafio de superar egoísmos, protagonismos, desconfianças, preconceitos e inveja; males que muitas vezes espreitam o trabalho coletivo e a mobilização social”. Além disso, “implica em aprender a escutar e obedecer propondo”.

Parte 3:

Ayni. Trata-se de algo com significado muito próximo da minga, que define um sistema de trabalho de reciprocidade familiar entre os membros da ayllu (uma comunidade que trabalha com a propriedade coletiva). O mais comum é trocar trabalhos na agricultura, pastoreio, cozinha ou na construção de casas. Essa tradição continua viva não apenas em muitas comunidades camponesas, mas também na população mestiça no Equador, Bolívia, Peru e Chile. Os bancos de tempo, para troca de serviços no movimento espanhol 15-M por exemplo, têm muito de ayni.

Mutirão. É um termo de origem tupi, usado no Brasil para definir uma mobilização coletiva baseada na ajuda mútua não remunerada. A definição de mutirão na Wikipedia é bastante redonda: “uma expressão usada originalmente para o trabalho no campo e na construção civil de casas populares, em que todos são beneficiários e se ajudam, com um sistema rotativo e sem hierarquia”. É muito usado para ações coletivas não remuneradas como limpeza de parques, ruas , escolas… Para esta prática de ação comunitária existem muitos sinônimos: muxirão, muxirã, muquirão, putirão, putirum, pixurum, ponxirão, punxirão ou puxirum.

Córima. O povo mexicano rarámuri, que vive nas montanhas de Chihuahua, usa o termo córima para definir um ato de solidariedade com alguém que está passando mal. Não oferecer córima a alguém que precisa de ajuda é considerado uma violação de uma obrigação e uma ofensa. A definição também inclui a “prática do bem comum”. Não é muito relacionada à caridade, já que os rarámuri estão longe da moral católica. A máxima autoridade das decisões desse povo é a assembleia, como nos movimentos como 15M, Occupy Wall Street e o mexicano #YoSoy32.

Maloca. É uma casa comunitária utilizada pelas tribos indígenas da região amazônica do Brasil e da Colômbia. Nela, diferentes famílias convivem, Compartilham o lugar de trabalho, da mesma forma que os espaços de co-working. A propriedade é coletiva, como as ocupações (squatter communities) na Europa. O commons dita o dia a dia. De noite, a maloca é um centro de conhecimento. Contam histórias, mitos, lendas. As tendas da campanha da praça Tahir, no Cairo; na Puerta del Sol, de Madri; ou de Zuccotti Park, em Nova York, durante o Occupy Wall Street, poderiam ser a versão tecno dessas casas coletivas na Amazônia.

Publicado por Vera Maria Moreira

Reproduzido de Rede Cooperação Criança e Paz
01 ago 2012

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