quinta-feira, 7 de junho de 2012

Pachamama . O Filme de Eryk Rocha


Pachamama . O Filme

Continente em movimento
Walter Salles

Alguns diretores olham para o mundo de forma tão original e específica que, logo nos primeiros planos de seus filmes, é possível perceber quem está por trás da câmera.

O mestre Eduardo Coutinho é um deles. Alguns jovens cineastas também têm essa rara qualidade. Beto Brant na ficção, por exemplo. Ou Eryk Rocha, no documentário.

Logo nos primeiros planos de Pachamama, viagem documental de Eryk através do continente latino-americano que estreou na última sexta-feira, somos convidados à participar de uma jornada tão sensorial quanto aquela vivida em Rocha que Voa. Nesse mergulho em busca de uma América Latina em transformação, Eryk nos conduz na direção de um continente indígena, onde a herança incaica se revela bem mais próxima de nós do que poderia parecer à distância.

O filme é o resultado de uma viagem feita a partir do Brasil por um grupo de pesquisadores que partem em dois jipes para a Bolivia e o Peru - a tríplice fronteira. Os companheiros de viagem não são nunca enfocados - aqui, só importa quem vive na(s) terra(s) que a câmera de Eryk desvenda. Encontros na estrada, ou à margem dela.

Caminhos, campos, montanhas. Em Pachamama, o mergulho é para dentro do coração de um continente. Cuzco, no Peru, El Alto na Bolívia, algum lugar perdido entre dois vilarejos andinos. "Agosto é o mês em que não deixamos adoecer a terra", nos diz uma india Aymara. Toda uma cosmogonia, uma visão inusitada do tempo e do espaço, começa a tomar forma.

Nessa deriva poética, a câmera interessa-se principalmente pelo humano, mas também pelo político. Escuta-se Evo Morales com a mesma atenção dada àqueles que, na provínvia de tendência separatista que é Santa Cruz, criticam o atual governo boliviano por "não escutar nossos opositores" e "não propor um processo democrático real".

É essa coragem de não fugir ao debate, aliada à uma utilização tão criativa do som e da imagem quanto a dos documentários anteriores de Eryk Rocha, que faz de Pachamama um filme que merece ser descoberto. Um filme para aqueles que querem saber mais notícias sobre a América Latina do que aquelas que chegam a nós pelas TVs. A de um continente em transe.

Paradoxalmente, é o Brasil que pode ser visto refletido à distância. “Quanto mais nos distanciamos do ponto de partida, mais aprendemos sobre nós mesmos”, disse uma vez Wim Wenders. “Pachamama” permite tecer a relação entre o Brasil e países que nós parecem tão distantes, mas na verdade não o são. Permite também perceber o quanto o documentário brasileiro é hoje rico e diverso, passos à frente da nossa ficção.

Reproduzido de Pachamama o Filme




O cinema é a terra
Eryk Rocha

Em janeiro de 2007, viajei com um grupo de brasileiros em dois jipes partindo do Rio de Janeiro até a tríplice fronteira amazônica em direção ao Peru e à Bolívia. Era um grupo formado por três historiadores, um cientista político e dois engenheiros mecânicos que cuidavam dos veículos e dos mapas. Começa uma odisséia de trinta dias pela realidade amazônica e andina. Do olhar desse viajante nasceu o filme Pachamama. A Viagem me despertou inúmeras questões:

Como fazer um filme sobre o Brasil indo ao encontro da realidade vivida no Peru e na Bolívia? Que parte do continente é essa? De onde viemos?  O que é ser sul-americano? Como nossos mitos e raízes podem estimular a arte e a política?

Pachamama significa a mãe-terra. É a deusa agrária dos camponeses. Remete para a fertilidade da terra.

Nunca tive a certeza de que o material que estava filmando se transformaria em filme. Foi a primeira vez que assumi na íntegra a câmera de um filme meu. “Pachamama” traz essa experiência do corpo, a câmera está integrada no meu corpo, na minha respiração, na pulsão dos meus órgãos, a câmera é um prolongamento do corpo. Pachamama é também um filme sobre a solidão. O filme foi sendo descoberto a cada dia a partir dos múltiplos encontros e acasos. O homem e a câmera. O homem e a terra. O homem em movimento. Em movimento pelo continente sangrando, em ebulição, em erupção vulcânica; Pachamama é um filme do interior, de dentro da terra, de entre as pedras, de entre as terras, de dentro das plantas, que vai ao interior das veias do corpo e das veias abertas da América Latina.

Uma das coisas que mais me impressionou da travessia foi perceber que hoje a América do Sul está no “olho do furacão”. Vive um momento particular de um fazer a política desde a terra, desde uma experiência ancestral.  Não é uma experiência política tradicional de esquerda, comunista ou socialista, mas uma experiência que vem de uma reflexão cultural, comunitária, de diferentes movimentos sociais nativos, dos povos originários. Na Bolívia uma grande aliança entre os movimentos indígenas camponeses com um partido institucional conduziu Evo Morales ao poder.

Em Pachamama isto me marcou muito: entender como a terra está fertilizando a política. Os homens que reivindicam a terra e as suas riquezas. Mas não reivindicam porque ela lhes "pertence" e sim porque, antes, eles é que "pertencem" à terra - e é essa relação de amor que reinventa a política e projeta outros paradigmas de democracia. A ancestralidade despertando um novo olhar. Isso é um fenômeno novo, original. E também pode ser um grande estímulo para pensar o Brasil, acho muito importante que busquemos nossas matrizes, nossas fontes, novas terras para poder pensar nosso país. Só assim abrimos as veredas da reinvenção.

É contundente perceber no Peru e na Bolívia a coexistência dos tempos, os paradoxos do tempo, passado e presente coexistindo ali naquele momento nos rostos dos herdeiros da civilização Inca. Jerzy Grotoviski, o diretor e teórico do teatro polonês, fala disso: ou nós chegamos forte no nosso tempo através da tradição, ou nós roubamos coisas do mundo. Mas para roubar tem que ser muito bem roubado. Então vamos roubar fontes e forças... Ele diz: “não me interessa o novo, me interessa o que foi esquecido. Me interessa um cinema-documentário sincrético que desfronteirize essa separação do real e do imaginário, do sonho e da realidade, tudo está amalgamado dentro de nós, não há limite entre essas forças, essa divisão é filha do racionalismo europeu, vem de uma idéia monoteísta. Vem de uma dualista que separa o corpo e mente. Para os indígenas, a fantasia é a mais viva realidade, o homem está integrado à Natureza.

O meu deslocamento me fez ver redescobrir o Brasil e suas possibilidades, me fez reconhecer suas diferenças e suas multi-identidades, me fez me ver como cidadão e como artista que busca aprender com o mundo. Apesar da ditadura de um certo paradigma de mercado que reina e massacra, hoje a tecnologia aliada com a imaginação, pode desmistificar o mito e o fetiche do cinema. Filmar hoje, mais que nunca, é como tocar violino, pintar ou escrever... respirar... Em Pachamama, o destino me levou, o acaso me levou. Destino e acaso não são antagônicos, pelo contrário. Fui arrastado pela terra...


Reproduzido de Pachamama . O Filme

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